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A leitura como lição de casa

Texto por Henrique Rodrigues    

Em sua coluna, Henrique Rodrigues defende as possibilidades de criação e divulgação literárias em tempos de quarentena

Confesso que saí por esses dias para ver o mar e respirar um pouco durante uns minutos. Se mesmo os presidiários têm direito a um banho de sol, deve haver algum malefício físico e, especialmente, psicológico em permanecer muitos dias seguidos sem fixar os olhos num ponto distante.

A praia estava numa grande ressaca, com as ondas quase lambendo o calçadão, de maneira que o mar revolto se juntou ao horizonte naquele opaco entardecer, numa cena que parecia resumir, entre o poético e o dramático, o nosso estado semiapocalíptico atual.

Talvez por isso, ao retornar ao claustro onde estamos agora, tenha pensado que estamos vivendo uma rara ocasião em que todo o planeta para diante – ou, mais precisamente, à mercê – de um evento histórico. Estranhamente, somente uma nova ameaça letal fez com que o mundo inteiro parasse, sem saber até quando, enquanto luta contra algo invisível, como se abruptamente nos tornássemos personagens das ficções distópicas que nos entretêm há anos. E a única arma que as pessoas têm contra esse inimigo é justamente não fazer nada. Ou melhor: ficar em casa.

Pode haver pelo menos um aspecto positivo – se é que o termo se aplica – nessa parada abrupta a que nos submetemos. Se o tempo sempre foi escasso para uma reflexão maior sobre as grandes questões, eis uma oportunidade de fazer um balanço e pensarmos em alguns caminhos para quando voltarmos a olhar para frente.

Na parte que nos cabe, vale pensar num fato quase óbvio que estamos vivendo durante essa quarentena. O setor cultural, além de nunca ter recebido o destaque merecido no país, vem sendo atacado há algum tempo, sobretudo moralmente. Muita gente tem afirmado que as manifestações culturais são coisa de vagabundo, e essas mesmas pessoas estão em casa agora vendo filmes, séries, jogando videogames, de repente até lendo livros. Talvez seja uma oportunidade para lembrar a elas que tudo isso é feito por profissionais que precisam ser respeitados e valorizados, moral e financeiramente, convém lembrar.

Por falar em oportunidade, além do audiovisual, a fruição da literatura tem sido bastante favorecida nesse novo contexto. Estão pipocando inúmeras iniciativas como a distribuição de livros gratuitos; contadores de histórias e poetas se apresentam em vídeos e lives; escritores, editores e demais profissionais da área conversam com o público nas redes sociais. Várias instituições estão colocando no ar iniciativas para promoção da leitura. Não me lembro de ver tanta gente mobilizada para fazer ideias circularem usando criatividade e pouco ou nenhum recurso – mesmo porque, com tudo parado, os artistas em geral estão passando por um tremendo perrengue.

Assim como o comércio em geral, o de livros está diretamente afetado pela falta de movimento, que chega como um pancadão num setor que já vem sendo bombardeado por crise após crise. Mas aí que é está o lance. Apesar de parecer um paradoxo (que de fato é), se por um lado o comércio de livros passa por um grande buraco, por outro a literatura respira a fortes e belas lufadas.

Sei que o assinante do PublishNews é bastante safo e entende do riscado, mas não custa lembrar que livro e literatura são coisas diferentes. Em termos de Brasil, boa parte da melhor literatura produzida não é encontrada nas livrarias físicas, pois está sendo publicada em editoras pequenas, em tiragens mínimas, que nem chega a ser distribuída nos canais convencionais. E basta uma olhada rápida nos destaques das livrarias e nos títulos das listas de mais vendidos, onde está evidente que a literatura não é atualmente a categoria preferida do mercado. Enfim, “livros são papéis pintados com tinta”, já disse o Fernando Pessoa no poema “Liberdade”.

Por isso a literatura, de certa forma, é livre do livro. E nem precisaria mencionar o importantíssimo movimento de slams e saraus, cuja natureza marcada pela oralidade não prescinde de qualquer elo da cadeia editorial impressa para se capilarizar país adentro, especialmente nas periferias.

A literatura, se não for uma necessidade, é um direito. Daí que temos faca e queijo nas mãos para compreender o momento atual como possibilidade de ser realizada a grande ação socioeducativa que falta ao Brasil para valorização da leitura literária. Considerando que boa parte das pessoas está seguindo as orientações de isolamento social, ou pelo menos seguirá à medida que os infectados aumentem no território, seria bastante viável a criação de um programa em parceria dos governos, ONGs e empresas privadas. E nem precisamos inventar a roda, bastando costurar e replicar as melhores práticas entre tantos projetos de pequeno porte já existentes, como os que citei lá em cima.

Sim, pode parecer utopia, mas não estamos vivendo a era do inesperado? E se após tudo isso muitas pessoas voltassem à vida entendendo que os livros são bens culturais necessários e relevantes para as nossas existências, valorizando, em todos os aspectos, a nossa rica e vasta literatura?

Nesse período difícil em que estamos, a experiência literária talvez seja uma das melhores perspectivas para enxergarmos os nossos abismos pessoais e coletivos, tanto para superá-los quanto conviver com eles. A literatura pode ser não só uma das melhores atividades para ser realizada no ambiente doméstico: por tudo o que oferece sobre a condição humana, ela pode também ser redescoberta como um novo caminho para aprendermos a voltar para casa.

Fonte: PUBLISHNEWS

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