A falta de acuidade das previsões impacta negativamente a abordagem do combate à epidemia e o tratamento dos infectados
Texto por Dora Kauffman

No livro “Os Sertões” (1902), marco da literatura brasileira, o escritor e jornalista Euclides da Cunha narra a sangrenta Guerra de Canudos no interior da Bahia, liderada por Antônio Conselheiro. O livro expõe de forma realista a vida dos jagunços e dos sertanejos. Descrevendo o cotidiano no acampamento de Canudos, o escritor cunha uma expressão muito apropriada aos tempos atuais: “A vida normaliza-se naquela anormalidade”. A covid-19 implicou em violações inimagináveis às liberdades individuais: o direito de circular pelas ruas das cidades, agora regulado pelo poder público. Provavelmente, até o final do ano teremos “quarentenas intermitentes” (libera/flexibiliza, aumenta a contaminação, retrocede) e um cenário econômico volátil. Nessa vida suspensa, parte das expectativas está depositada nas tecnologias de inteligência artificial (IA).
Enquete realizada pelo Aspen Institute da Alemanha, em recente Live, indicou os campos com maior potencial para a IA no combate a epidemia: 36% em rastreamento (aplicativo de monitoramento de movimentação), 22% no desenvolvimento de vacinas e 20% na previsão de propagação do vírus. No campo da ética, 42% dos desafios estão no gerenciamento de recursos hospitalares e na triagem de pacientes e, empatados com 21%, o reconhecimento de imagem e os aplicativos de rastreamento.
Pressionados pela urgência, pesquisadores mundo afora estão empenhados em criar modelos para detectar a contaminação, prever a evolução de pacientes contaminados, identificar grupos de risco e descobrir vacinas e medicamentos.
Existem, atualmente, 115 estudos de vacina contra a covid-19 acontecendo no mundo, sendo 78 registrados e 5 já em testes clínicos; nessa semana, a BioNTech e a Pfizer aprovaram junto à autoridade reguladora alemã – Paul-Ehrlich-Institut -, o ensaio clínico de fase 1/2 do programa compartilhado de vacinas BNT162 da BioNTech; essa fase inclui testes em cerca de 200 indivíduos saudáveis com idades entre 18 e 55 anos com o objetivo de determinar a dose ideal, além de avaliar a segurança e a imunogenicidade da vacina. No entanto, segundo o biólogo Atila Iamarino, no melhor cenário as vacinas estarão disponíveis em meados de 2021 (tempo recorde comparado com o desenvolvimento da vacina da Ébola, por exemplo, que demorou cinco anos).
Parte dos estudos publicados, contudo, não observou as regras científicas, ou seja, não foi revisado por outros especialistas (“revisão por pares”). Em 31 de março, um grupo de pesquisadores europeus publicou uma análise crítica na conceituada revista científica britânica British Medical Journal – “Prediction models for diagnosis and prognosis of covid-19 infection: systematic review and critical appraisal”– identificando inconsistências nos resultados de 31 modelos utilizados em 27 estudos: “Todos os modelos relataram desempenho preditivo bom à excelente, mas todos foram avaliados como tendo alto risco de viés devido a uma combinação de relatórios inadequados e conduta metodológica deficiente para seleção dos participantes, descrição do preditor e métodos estatísticos utilizados”, ponderam os pesquisadores europeus.
Foi identificado alto risco de viés em todos os modelos, o que questiona a confiabilidade de suas previsões: as amostras de pacientes utilizadas não representavam a população-alvo dos modelos, ou eram relativamente pequenas (poucos dados em modelos de machine learning podem funcionar em previsões mais simples, como prever a batida de falta sem barreira num jogo de futebol, onde parte das variáveis é conhecida); ademais, apenas um estudo utilizou dados coletados de pacientes fora da China (impacta negativamente a acurácia do modelo por conta, dentre outros fatores, das diferenças entre os sistemas de saúde dos países)
Segundo a análise “como esperado, nesses primeiros estudos com modelos de previsão relacionados à covid-19, os dados clínicos de pacientes contaminados ainda são escassos e limitados à dados da China, Itália e registros internacionais. Com poucas exceções, o tamanho da amostra disponível e o número de eventos para os resultados de interesse foram limitados”. Os estudos, igualmente, não foram transparentes com relação as etapas dos testes. Essas e outras falhas prenunciam que as previsões são, provavelmente, menos assertivas do que os relatos.
Os modelos estatísticos de previsão têm uma limitação intrínseca que é o fato de prever o futuro com base em dados do passado (inferências de tendências passadas). Essa limitação não ocorre quando se trata de modelos preditivos com séries não temporais – Computer Vision, PNL, e outros sistemas fechados -, mas é uma questão real em modelos de série temporais em tempo real (caso da epidemia da covid-19). A falta de acuidade das previsões impacta negativamente a abordagem do combate à epidemia e o tratamento dos infectados (procedimentos, remédios e vacinas).
A covid-19 confirmou que a inteligência artificial é a tecnologia mais promissora do século XXI, mas, simultaneamente, alertou para suas limitações. Como todos os modelos estatísticos de probabilidade, seus resultados indicam apenas a probabilidade de algo acontecer (e quando); no caso dos modelos de aprendizado de máquinas/ redes neurais (deep learning) a variável “dado” é um componente sensível do modelo (quantidade, diversidade, qualidade), e onde reside a principal causa das falhas detectadas nos modelos analisados, função, dentre outros fatores, (a) do crescimento exponencial da contaminação; (b) do período de contaminação relativamente curto; (c) da trajetória da contaminação variar por país e por região em função das medidas adotadas, do clima, do comportamento da população; e (d) dos métodos de contabilização de pacientes positivos e mortes não serem universais.
O coronavírus está sendo chamado de “acelerador de futuros”. Visivelmente, a COVID-19 está acelerando o avanço da IA, incluindo o melhor entendimento de suas ainda muitas limitações.
*Dora Kaufman é pós-doutora COPPE-UFRJ (2017) e TIDD PUC-SP (2019), doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais” (2017), e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?” (2019). Professora convidada da FDC e professora PUC-SP.
Fonte: Época Negócios