A Biblioteconomia — ou o trabalho em bibliotecas e serviços de informação correlatos — é uma profissão progressista. E por progressista aqui são referidas as atitudes e entendimentos a favor da liberdade individual e dos direitos humanos, da celebração da diversidade e de uma postura contrária à censura e à dificultação ao acesso à cultura e ao conhecimento.

O Código de Ética brasileiro

Conselho Federal de Biblioteconomia, entidade que protege a sociedade de maus bibliotecários e protege a reserva de mercado destes profissionais, tem estabelecido em sua Resolução 42 de 2002 o código de ética profissional. O Conselho tem uma função específica e não deve ser confundido com as associações profissionais, como veremos mais abaixo.

Pela própria definição das obrigações e deveres do bibliotecário já temos estabelecido a fundamentação progressista da profissão:

Art. 3º Cumpre ao profissional de Biblioteconomia: a) preservar o cunho liberal e humanista de sua profissão, fundamentado na liberdade da investigação científica e na dignidade da pessoa humana;

O mesmo Conselho editou em 1966 o juramento profissional da classe bibliotecária em sua Resolução 06 de 13 de julho de 1966:

Prometo tudo fazer para preservar o cunho liberal e humanista da profissão de Bibliotecário, fundamentado na liberdade de investigação científica e na dignidade da pessoa humana.

Esta postura claramente influenciada pelo Iluminismo diz respeito ao respeito individual das pessoas e suas expressões, opondo-se a interpretações totalitárias de poder e socialmente excludentes. Por definição uma pessoa bibliotecária deve defender a liberdade individual e a dignidade pessoal, pois esta é sua função enquanto profissional.

Em momentos tormentosos à democracia, ao debate político e ao respeito a opositores, o mínimo que um bibliotecário deve fazer — de acordo com seu código de ética e juramento profissional — é fazer oposição a pessoas, partidos e tendências totalitárias, que defendem abertamente regimes militares, que celebram torturadores e a execução sumária de opositores políticos. Além disso, bibliotecários e pessoal de biblioteca devem fazer força para conter a tsunami regressista que prevê e propõe o fim de direitos pessoais e promove ativamente a opressão de grupos historicamente subordinados, como mulheres, negros e população LGBTQ.

Código de Ética da IFLA

Menos conhecido é o Código de Ética proposto pela IFLA, a Federação Internacional de Associações de Bibliotecários. Não se trata exatamente de um código de ética profissional global, mas sim um indicativo para as entidades que congregam bibliotecários e que se filiam a esta organização. No Brasil, a FEBAB, Federação Brasileira de Bibliotecários, Cientistas da Informação e e Instituições, é membro da IFLA e, portanto, entidades menores, como associações profissionais regionais, como a ARB (sitemeus posts sobre a ARB), também estão vinculadas.

A função das associações profissionais é qualificar os profissionais e garantir um bom serviço à comunidade a que eles servem, representando os interesses de todos os envolvidos. Diferentemente do Conselho profissional, como visto acima, sua preocupação é com a qualificação dos profissionais e com o desenvolvimento de projetos sociais que engajem as comunidades a serviços de informação.

Assim, o caráter progressista da profissão de bibliotecário também aparece neste código de ética da seguinte forma:

Os serviços de informação de interesse social, cultural e de bem-estar econômico estão no coração da Biblioteconomia e, consequentemente, os bibliotecários têm responsabilidade social.

Ainda, ele faz uma citação direta à Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, criada em 1948 como resposta às atrocidades da Segunda Guerra Mundial:

A ideia dos direitos humanos, particularmente como expressa a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948), requer de todos reconhecer e identificar a humanidade de todos os povos e respeitar seus direitos. Em particular, o Artigo 19 estabelece os direitos de livre opinião, expressão e acesso à informação para todos os seres humanos.

Sobre censura e acesso:

Os bibliotecários e outros profissionais da informação rejeitam a negação e a restrição do acesso à informação e ideias, mais particularmente, por meio de censura, seja por estados, governos, religiões ou instituições da sociedade civil.

Sobre minorias e inclusão:

Para promover a inclusão e erradicar a discriminação, os bibliotecários e outros profissionais da informação asseguram que o direito de acesso à informação não pode ser negado e que serviços equitativos são fornecidos para qualquer pessoa de qualquer idade, nacionalidade, crença política, condição física ou mental, gênero, descendência, educação, renda, condição imigratória ou de asilo, situação matrimonial, origem, raça, religião e orientação sexual.

Sobre crime e administração públicas:

Os bibliotecários e outros profissionais da informação apoiam e atuam para assegurar a transparência para que as atividades do governo, administração e negócios sejam operadas para o escrutínio do público geral. Eles também reconhecem que é de interesse público que a corrupção, má conduta e crime sejam expostos no que constitui quebra de confidencialidade pelos chamados ‘informantes’.

Temos, desta forma, princípios que complementam a noção de “humanismo” e “liberalismo” do código de ética profissional brasileiro: bibliotecários e bibliotecárias têm uma responsabilidade social inerente às suas práticas, demonstrando que a profissão não é apenas “uma técnica” e sim um fazer socialmente direcionado.

Ainda, a IFLA menciona explicitamente noções básicas que são explicitamente rechaçadas por determinados candidatos, partidos e ideários no Brasil contemporâneo, como os Direitos Humanos (e especificamente direitos de livre opinião, expressão e acesso à informação), a inclusão social de grupos específicos e a transparência governamental.

É válido lembrar que exclusão social não significa apenas impedir física ou burocraticamente o acesso de determinados grupos aos meios de informação: ele também está relacionado à práticas cotidianas e técnicas, como a invisibilização de grupos subordinados, a negação do direito ao nome social para pessoas trans, a falta de preocupação com acessibilidade documental para pessoas com deficiências e a falta de programação e serviços que tratem de assuntos de interesses da comunidade marginalizada que poderia estar usando determinado serviço de informação.

Iniciativas globais

Além dos códigos de ética, que regem moralmente o fazer bibliotecário, há diversas iniciativas globais — sejam elas projetos instituídos, práticas corriqueiras em bibliotecas estrangeiras ou até mesmo marcos teóricos da profissão — que comprovam o caráter progressista da profissão bibliotecária.

O primeiro exemplo que temos são as 5 Leis de Ranganathan. As duas mais importantes para esta crítica são a segunda e a terceira leis: “A cada leitor seu livro” e “A cada livro seu leitor”, respectivamente.

Diversas são as pessoas que analisam estas leis e refletem sobre seus desdobramentos, sejam históricos, sociais ou tecnológicos. Um exemplo é Nice Figueiredo, em texto de 1992, que traz diferentes interpretações históricas sobre as leis. Por exemplo, ela cita Eugene Garfield e sua análise da segunda e terceira leis: para este autor, as leis foram criadas na Índia em um contexto de falta de acesso público a bibliotecas, pois elas estavam geralmente ligadas a universidades e instituições de pesquisa. As leis propostas por Ranganathan, então, serviram como impulso à tradição democrática de acesso em bibliotecas do mundo todo. Ainda, o mesmo autor interpreta estas duas leis como regras de inclusividade a todos os leitores, independentemente de classe social, sexo, idade, ou qualquer outro fator (“a cada leitor seu livro”) e que os livros de uma biblioteca devem estar disponíveis no catálogo, expostos de forma atraente e prontamente acessíveis (“a cada livro seu leitor”).

Avançando o pensamento de Garfield, Figueiredo também cita Frederick Lancaster, que lembra do conceito de usuário potencial. Com isto, tem-se que os livros adquiridos devem ser encontráveis pela comunidade carente deles. Lancaster diz o seguinte sobre o assunto:

Pode-se dizer, então, que para cada item adquirido (ou, logicamente, para cada item publicado) existem leitores em potencial na comunidade. (p. 188)

Ou seja, os livros (e serviços) devem ser ofertados à comunidade também com base na demanda reprimida que pode existir, pois usuários potenciais (e que não são servidos hoje) podem e devem ser servidos amanhã.

Outro exemplo de iniciativas globais que apoiam o cunho liberal e humanista, e, principalmente, privilegiam o acesso à informação pela sociedade são os movimentos de acesso aberto e Creative Commons. Ambas as propostas são baseadas em flexibilização das leis de direito autoral — geralmente restritivas ao ponto de impedir a fruição cultural e científica. O acesso à cultura e à informação científica são a base de uma sociedade democrática e livre, onde cada pessoa pode e deve, além de consumir, ter a liberdade de produzir conhecimento, arte e entretenimento.

Há também um exemplo regional de prática progressista em bibliotecas, dos Estados Unidos: a Banned Books Week, ou “semana dos livros banidos”, organizado pela ALA, American Library Association. Historicamente nesta semana as bibliotecas, especialmente escolares e públicas, divulgam — em geral através de displays criativos e chamativos — obras já censuradas ou que sofreram tentativas de censura. Livros como “As aventuras de Huckleberry Finn” e “Harry Potter”, por exemplo, já sofreram ataques de conservadores nos Estados Unidos por retratarem racismo e “satanismo”.

Por fim, uma iniciativa global que defende os Diretos Humanos e apresenta uma proposta progressista é a Agenda 2030 da ONU. Já escrevi neste blog em outros momentos sobre este tema, mas é válido relembrar que diversas são as possibilidades de participação de bibliotecas nesta luta pelo desenvolvimento sustentável. Por exemplo, bibliotecas são instituições úteis e adequadas para programas como melhorar o acesso à informação para crianças, inclusive as com deficiência, indígenas e em vulnerabilidade (objetivo específico 4.5), aumentar a literacia em adultos (objetivo específico 4.6), melhorar e criar mais ambientes adequados para a educação (objetivo específico 4.a), promover o empoderamento feminino através do uso de tecnologias de informação e comunicação (5.b), aumentar o acesso à internet (9.c) e melhorar a proteção e salvaguarda do patrimônio cultural e natural (11.4), promover a igualdade (social, econômica e política), independentemente de idade, sexo, deficiência, raça, etnia, origem, religião, status social ou outro tipo de status (10.2) e garantir o acesso público à informação e proteger liberdades fundamentais em acordo com legislação nacional e acordos internacionais (16.10).

A Biblioteconomia é historicamente uma profissão voltada ao avanço das causas sociais, com diversas iniciativas ao redor do mundo que lutam contra discriminações, tentativas totalitárias de governo e atentados aos direitos humanos.

Uma coda: bibliotecários contra os regressistas

Contudo, apesar de todos os exemplos práticos e teóricos há quem insista que a Biblioteconomia é uma prática neutra e não deve ser socialmente engajada. Para estas pessoas, precisamos esclarecer o seguinte: trabalhar com informação não pode ser uma prática neutra — não se posicionar em tempos de crise significa posicionar-se a favor da opressão e não do lado que defende o oprimido. E a função de qualquer postura regressista é perpetuar a opressão.

A política de informação de um local (seja ele pequeno como uma instituição privada ou grande como uma nação) também não é alheia a outras políticas sociais. Diversas são as discriminação pelas quais as pessoas passam. E é dever de quem trabalha em bibliotecas e serviços correlatos reconhecer a existência destas discriminações e agir de forma a mitigar o mal que elas causam a seus usuários.

Pessoas são discriminadas por sua sexualidade. Deve ser preocupação da classe bibliotecária a disseminação de informações adequadas para a educação sexual e para a educação para diversidade, diminuindo preconceitos e garantindo o exercício à cidadania.

Pessoas são discriminadas por sua etnia e cor de pele. Deve ser preocupação da classe bibliotecária a garantia da visibilidade de todas as pessoas, valorizando minorias oprimidas historicamente por motivos coloniais e racistas.

Pessoas são discriminadas por sua aparência e por sua capacidade física. Deve ser preocupação da classe bibliotecária oferecer serviços e conteúdos acessíveis, seja de forma física, tecnológica e atitudinal, acolhendo pessoas em toda a sua variedade corporal.

Pessoas são discriminadas pela educação formal que têm. Deve ser preocupação da classe bibliotecária oferecer serviços adequados às pessoas sem educação formal, valorizando seus conhecimentos e acolhendo-os em programações que dignifiquem suas existências, auxiliando aqueles que desejam ter mais conhecimentos.

Pessoas são discriminadas pela sua renda e classe social. Deve ser preocupação da classe bibliotecária atingir todas as classes sociais, especialmente aquelas que não têm recursos para acessar entretenimento e cultura como cinemas, livrarias, exposições. Também deve ser preocupação da classe bibliotecária reconhecer o valor da cultura popular e de massa e não privilegiar o que hoje é chamado de “alta cultura”.

Pessoas são discriminadas pela língua que falam, seu sotaque ou sua variação. Deve ser preocupação da classe bibliotecária expor suas comunidades a outras culturas e vivências, especialmente através da literatura de outros países e acolhendo pessoas que falam outros idiomas ao seu grupo. Também aqui podem ser citadas as pessoas imigrantes e refugiadas, que adotam um novo lar geralmente distantes do seu grupo social e que também precisam ser acolhidas, reconhecidas e vistas.

Pessoas são discriminadas pela sua idade. Deve ser preocupação da classe bibliotecária acolher pessoas de todas as idades para serviços adequados às suas necessidades e interesses, com foco especialmente no mitigação da exclusão digital.

Pessoas são discriminadas pela sua religião ou ausência dela. Deve ser preocupação da classe bibliotecária reconhecer a diversidade religiosa da sua comunidade, incluindo aí a ausência de religiosidade entre seus membros, promovendo o respeito e a liberdade de expressão.

Deve ser preocupação da classe bibliotecária reconhecer que diversas opressões se mesclam e se sobrepõem, criando uma amálgama que impede o pleno exercício da cidadania. Pessoas raramente são oprimidas devido a um único status e as pessoas privilegiadas raramente o são por causa de apenas um motivo — é dever da classe bibliotecária congregar todas as pessoas e oferecer serviços no sentido de acabar com a ruptura social causada pelas diversas opressões existentes.

É dever da classe bibliotecária se esforçar para lutar por uma maior coesão social das comunidades em que ela participa.

O Brasil e o mundo vivem um momento tétrico de ataques à liberdade de expressão, à informação e conhecimento científico, a práticas populares de grupos marginalizados e ao livre questionamento dos padrões sexuais hegemônicos, como orientação sexual e identidade de gênero. Bibliotecas, como visto acima, historicamente estão relacionadas à luta pelos direitos humanos e civis.

Ser bibliotecário ou bibliotecária e defender ideários e políticas segregatórias, opressivas, que inibam a participação social e a expressão de determinado grupo ou que até mesmo celebram e normalizam a violência direcionada a determinada classe de cidadão é uma afronta à legislação profissional brasileira, à indicações internacionais de ética profissional e vai contra iniciativas globais históricas e contemporâneas da área bibliotecária.

Ser bibliotecário ou bibliotecária e permanecer neutro quando há candidatos, partidos e ideários regressistas fazendo força no Brasil é uma afronta às práticas e éticas profissionais.

Qualquer forma de opressão, como as citadas acima, mas não limitadas a elas, deve ser denunciada, contornada e remediada pelas pessoas que trabalham na área da Biblioteconomia, pois é disso que se fala quando se diz que esta é uma profissão com cunho humanista e liberal.

É impossível acreditarmos que a Biblioteconomia é uma prática neutra.

Fonte: BLOG DE FERNANDO P. BIBLIOTECÁRIO