Iniciativas como a Banda e o Catálogo HQ Brasil indicam que o meio dos quadrinhos no Brasil mantém a saúde, apesar dos baques econômicos e políticos enfrentados nos últimos anos

Num ano de desmontes e desespero generalizado, principalmente na cultura, é um alento ver iniciativas promissoras em áreas como os quadrinhos brasileiros. Mesmo com obstáculos, por exemplo a dificuldade de acesso ao público e a crise compartilhada com o mercado editorial, de que fazem parte, os criadores e comentadores de HQs nacionais têm se articulado, exibindo vitalidade e pensamento crítico.
Há, evidentemente, um vasto grupo de artistas que, por meio da linguagem dos quadrinhos, tenta repensar nossas formas de ver e viver o Brasil e o mundo. Não é uma novidade no país de Millôr Fernandes, Henfil e Glauco. Quero destacar aqui outro tipo de iniciativa, que em 2019 ganhou um espaço talvez inédito: a reflexão sobre quadrinhos.
Uma linguagem artística, a da literatura e a do cinema, a dos quadrinhos, não vive apenas de criadores. É preciso que haja um ecossistema, um circuito de produção e repercussão, a partir do qual a criação possa se adensar e se tornar mais complexa, mais ousada (penso em algo próximo ao conceito de “sistema literário”, de Antonio Candido). Além dos artistas, portanto, é preciso que haja um público leitor dos quadrinhos, grupos de editores que os disponibilizem e uma série de críticos, dispostos a pensar de modo aprofundado sobre as novidades e as continuidades na criação.
Nesse sentido, o ano de 2019 já começou com um marco: a exposição Quadrinhos, no MIS, que, aberta no fim de 2018, buscava sintetizar a história dessa linguagem, unindo a perspectiva brasileira e a universal (apesar de predominantemente europeia e norte-americana). O público teve contato com os mais diversos autores e gêneros de quadrinhos, de diversos países e tendências, e assim pôde identificar recorrências e diálogos dentro dessa tradição global. Por sorte, não foi a única iniciativa do tipo ao longo do ano.
Agora no início de novembro, foi lançado o primeiro número da revista Banda , que resume bem as duas faces da crítica de quadrinhos em 2019. Por um lado, na figura de seus idealizadores reconhecemos vários participantes do tal ecossistema que toda linguagem artística requer. Dos quatro editores da Banda (Carlos Neto, Douglas Utescher, Gustavo Nogueira e Thiago Borges), três são jornalistas com atuação expressiva na área de quadrinhos:
Neto toca o canal Papo Zine , no YouTube; Nogueira, o site Êxodo; Borges, o blog O Quadro e o Risco. Utescher, por sua vez, é um dos donos da Ugra Press, loja e editora de HQs em São Paulo. Assim, tanto a crítica quanto a distribuição de quadrinhos estão contempladas de saída na Banda .
Por outro lado, a revista é um belo exemplo de uma iniciativa mais reflexiva. Tem entre seus objetivos situar os quadrinhos brasileiros num contexto mais amplo, o que se vê em seu slogan: “A história além dos quadrinhos”. Com o tema “Clássicos da HQ Brasileira”, a revista traz em seu primeiro número dez listas com obras que especialistas e artistas julgam incontornáveis nos quadrinhos nacionais, mas sem a pretensão de esgotar o debate. Um fio que atravessa a revista é de constante interrogação: o que significa um clássico? Pode-se falar em clássico na HQ brasileira? Que critérios utilizar? As indagações partem da efeméride de Diomedes, de Lourenço Mutarelli, um forte candidato a clássico, assim como, talvez no futuro, Marcelo D’Salete, objeto de uma reportagem. São algumas sugestões; a definição, porém, fica para outro participante do ecossistema: o leitor.
Se a exposição Quadrinhos e a revista Banda voltam o olhar para o passado, tentando entender de que modo ele pode nutrir o presente, outro marco de 2019 prefere se concentrar na atualidade: o Catálogo HQ Brasil. Editado por Érico Assis e disponível gratuitamente na internet, o livro de pouco mais de 150 páginas traz um panorama da produção de quadrinhos no Brasil de 2009 a 2018. Pretende servir de introdução, de retrato instantâneo; por isso, oferece diversas informações para que o leitor vá atrás das obras que lhe despertem a curiosidade.
Embora tenha sido encomendado para a divulgação da cultura brasileira no exterior, conforme explicita o prefácio de Luiz Alberto Figueiredo Machado (embaixador em Portugal), o livro não se confunde com uma vitrine ufanista ou patrioteira. Quem se interessar por obras de quadrinistas como André Dahmer e Raphael Salimena, Lovelove6 ou Aline Zouvi, entre outros mencionados pelo livro, logo descobrirá temáticas, críticas e procedimentos que desagradariam profundamente os setores reacionários no poder. Religião, política, história, sexualidade, opressão, humor: a última década dos quadrinhos brasileiros ofereceu de tudo, e dos mais diversos ângulos (nem sempre, ou melhor, quase nunca favoráveis).