Texto por Oscar Nestarez

Hoje existem, pelo mundo, milhares de pesquisadores em busca dessas respostas. E vêm de áreas que não se restringem às letras: da filosofia, da psicologia, da história e da antropologia, entre outras. Talvez aí encontremos uma possível chave para entendermos o feitiço Poe: o fato de sua obra transcender a ficção literária, em muitas esferas.
Seus contos e poemas alcançam os recessos e os mistérios da alma humana — mas sempre com os dedos da escuridão, é verdade. Afinal, para muitos (o signatário desta coluna entre eles), trata-se do fundador, ou do “consolidador” das narrativas de horror e de mistério como as conhecemos hoje.
Retrato inquietante
Outro fator que contribui para o sucesso de Poe é a sua figura. O olhar provocador, os cabelos desalinhados, os lábios cinicamente desenhados: antes mesmo dos textos, o próprio retrato do autor já causa estranhamento. É impossível não nos inquietarmos diante de sua expressão ora enigmática, ora melancólica, mas prestes a sair da moldura para nos fustigar, assustar, desestabilizar. É o retrato de um rosto esculpido pela genialidade, mas também vincado pelo desequilíbrio, pelo álcool e por uma incontrolável tendência à autodestruição.
Pois, quanto à vida de Poe, também ela é uma duradoura fonte de interesse e comoção. Foi uma vida algo breve e trágica, que começou naquele janeiro de 1809 e se encerrou misteriosamente em outubro de 1849, em Baltimore.
Hoje, é conhecida a trajetória de Poe rumo à ruína. Alguns biógrafos atribuem-na ao contato precoce com a morte — antes de completar três anos, ele perde a mãe, Elizabeth Arnold. O pai, David Poe, desaparece sem dar notícias. Mas devemos considerar também o temperamento combativo do autor, que sempre lhe custou caro: primeiro, a ruptura com o pai adotivo (o que o impediu de herdar sua significativa fortuna); depois, o “convite para se retirar” da Universidade de Charlottesville; por fim, os confrontos com chefes, que resultaram em seguidas demissões.
Dividindo águas
Mesmo assim, em meio ao caos exterior e interior, Poe conseguiu atingir o sublime. Desde 1827, quando publica seu primeiro livro — Tamerlão e Outros Poemas — até quase que o final da vida, ele jamais deixou de escrever. Contra tudo (e muitas vezes contra todos), legou-nos uma obra que praticamente dividiu as águas da literatura — as escuras das claras.
Hoje, a sombra de Poe alcança muito além dos livros. Trata-se de uma influência cuja origem é complexa — um território em que biografia e obra se confundem para aproximar o homem do mito. Seja como for, 210 anos após seu nascimento, nós o encontramos por todos os lados: ele está entre os escritores mais adaptados da história do cinema, roteiristas vivem recorrendo à sua ficção para criar séries, seus contos e poemas são frequentemente levados aos palcos do teatro, game designers têm transformado suas histórias em jogos, e por aí vai.

HQs celebram o mestre
Os quadrinhos também estão sob essa sombra. Aqui mesmo, no Brasil, temos dois exemplos recentes de como Poe influencia a nona arte. O primeiro é a coletânea Delirium Tremens, publicada pela editora Draco para marcar a efeméride de janeiro de 2019. A HQ traz oito histórias livremente inspiradas no universo poeano.
Algumas narrativas acenam sutilmente para os elementos ficcionais/biográficos de Poe. É o caso de “In articulo mortis”, criada a partir do interesse do autor pelas novidades de sua época—- notadamente, a hipnose, que o encantou e o levou a escrever “Os fatos no caso do sr. Valdemar”. O mesmo acontece com “Butim”, que explora o maior medo de Poe: ser enterrado vivo; e de “Murder”, que envolve a mística de O Corvo com as brumas da ficção científica e da conspiração.
A trágica biografia do autor de O Corvo também é o objeto de A Vida e os Amores de Edgar Allan Poe, publicada pela editora do Sebo Clepsidra. A HQ tem roteiro de R.F. Lucchetti, o papa das narrativas pulps brasileiras, e arte de Eduardo Schloesser. Ambas serão lançadas no Festival Edgar Allan Poe, evento comemorativo com palestras, leituras dramáticas e exibição de filmes que acontecerá no dia 19 em São Paulo (este link tem mais informações).

Poe, personagem
Por tudo isso e muito mais, Edgar Allan Poe continua vivo — e lido. Continuam enfeitiçando-nos os movimentos de sua escrita e de seu atormentado espírito; os rodopios de uma alma insatisfeita.
Criando com a própria vida, ele acabou por tornar-se o grande personagem de si mesmo. Antes de Roderick Usher, de Arthur Gordon Pym ou de William e Wilson, foi Poe, e ninguém mais, a vítima de neuroses transmutadas em atrocidades, o acossado pelas sombras, o perseguido e o perseguidor, o obcecado por aquilo que oculta o espesso véu do cotidiano.
Melhor para nós que, em meio a tanto tumulto, Poe ainda encontrasse lucidez para empunhar a pena. E para imprimir, no papel, a marca perene do gênio, que mais de dois séculos não foram capazes de apagar.
*Oscar Nestarez é ficcionista de horror e mestre em literatura e crítica literária. Publicou Poe e Lovecraft: Um Ensaio Sobre o Medo na Literatura (2013, Livrus) e as antologias Sexorcista e Outros Relatos Insólitos (2014, Livrus) e Horror Adentro (2016, Kazuá).
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Fonte: GALILEU