Texto por Thalles Siciliano
No dia 8 de março, celebramos o Dia Internacional da Mulher, quando uma das propostas é refletir sobre a condição da mulher no passado e no presente. Além disso, homenageamos todas as mulheres que ficaram, ou não, para a História nos mais diversos âmbitos da sociedade.
Como este blog tem uma temática biblioteconômica, nada mais justo e lógico do que celebrar bibliotecárias, o que é fácil e difícil ao mesmo tempo. É fácil porque não faltam mulheres na Biblioteconomia; e é difícil porque, naturalmente, há muitos exemplos de verdadeiras pioneiras na área.
Dessa forma, com base nos meus estudos, optei por escolher a que penso ser a maior bibliotecária que já trabalhou na Biblioteca Nacional no século XX, até hoje lembrada como uma das maiores diretoras da instituição: ninguém menos que Jannice Monte-Mór.
Jannice nasceu em Osasco, São Paulo, em 23 de julho de 1927. Foi mais uma aluna brilhante do renomado Curso de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional. Durante dois anos, teve aulas com grandes nomes como Rubens Borba de Moraes, Lydia de Queiroz Sambaquy e Cecília Meireles, e teve colegas tão ilustres quanto os professores, como Edson Nery da Fonseca, seu grande apoiador.
Nos anos 1960, o sempre polêmico Edson Nery esteve envolvido em uma intensa discussão, com tons corporativistas, sobre as atribuições dos bibliotecários, então recém regulamentadas pela Lei 4.084/1962 e pelo Decreto 56.725/1965. Um dos pólos do debate era a Biblioteca Nacional, que estava sob a direção do escritor Adonias Filho, criticado, entre outras coisas, por ocupar um lugar exclusivo do bibliotecário, segundo interpretações dos órgãos de classe na época. Contudo, talvez valha salientar que
[…] ao contrário de outras legislações regulamentadoras como, por exemplo, as do exercício da advocacia, da psicologia, da medicina ou mesmo da contabilidade, em lugar algum as atribuições estão explicitamente colocadas como privativas ou exclusivas dos bibliotecários1.
Em meio a essa polêmica, surgiu o nome de Jannice para a direção da BN, em grande parte devido à ação de Nery, mas oficialmente por indicação da escritora, bibliotecária e futura diretora da instituição Maria Alice Barroso. Isso foi considerado uma vitória da classe que tanto queria o cargo ocupado por alguém técnico.
Nery pareceu vibrar com a notícia, a julgar pelo seu texto nomeado Com os nossos fica a palma da vitória, presente no seu livro Ser ou não ser bibliotecário (Brasília, DF: Associação dos Bibliotecários do Distrito Federal, 1988). Na ocasião, elencou os gestores da BN que mereciam destaque, como Ramiz Galvão, Manoel Cícero Peregrino e Borba de Moraes, e ainda previu que sua colega e amiga seria a próxima a figurar na sua lista. Segundo ele, “[…] tem tudo para isso: competência, honestidade e dinamismo, conhecimento pessoal das bibliotecas europeias e norte-americanas, não lhe faltando sequer a sensibilidade literária […]”2.
Jannice assumiu a direção-geral da BN em 1971 e só saiu em 1979. Foi a primeira bibliotecária a assumir o cargo. Estudiosa das bibliotecas nacionais, contribuiu muito para afastar a crise que a instituição vinha atravessando desde, pelo menos, os anos da Era Vargas, sendo objeto até de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito). No resumo de Luciana Grings, servidora da BN, que pesquisou amplamente esse período:
Sua direção é por muitos considerada um dos principais marcos da história da
Biblioteca Nacional: uma gestão renovadora, norteada para a reforma administrativa da Biblioteca, à luz do então novo conceito de bibliotecas nacionais, o seu papel na coletividade a que serve e, principalmente, nos sistemas de informação bibliográfica do país3.
[…]
Tomou como bandeira para sua gestão a reforma administrativa da BN, a fim de melhorar processos e rotinas, otimizar recursos, identificar deficiências e posicionar a biblioteca de acordo com as exigências do perfil de biblioteca nacional proposto pela Unesco no recente Simpósio de 19704.
Contudo, apesar da boa recepção por parte da classe, a bibliotecária não era conhecida no meio político, o que talvez tenha contribuído para que a mídia até errasse seu nome. Não era raro faltar um “n” em seu primeiro nome; o Jornal do Brasil chegou a lhe chamar de “Djanice Montemor”; o Diário de Notícias escreveu “Janice Montemar”; e o Correio da Manhã a chamou de “Janine”.
Às vezes, a mídia nem mencionava seu nome. Grings, atesta que
Em dezessete ocorrências de citações à Biblioteca Nacional durante seu processo de nomeação e a sua gestão, seu nome aparece em somente dez; em outras ocasiões, a menção é substituída por expressões como “a direção da Biblioteca”, ou somente “A Biblioteca”. Curiosa é a redação do jornalista Heron Domingues, colunista do Diário de Notícias, que nas duas vezes em que escreveu sobre a BN não citou o nome da diretora; entretanto, em agosto de 1971, ele lembrou que “Homens de largo prestígio cultural e de acesso às cúpulas políticas passaram, nas duas últimas décadas, pela direção da Biblioteca”5.
Além da confusão em torno do seu nome (e da ausência dele), havia vezes que a imprensa não lhe identificava como bibliotecária, mas como “professora”, “senhora”, “professora bibliotecária” ou “bibliotecária professora”.
Apesar desses incômodos, Jannice logo foi reconhecida pela imensa maioria da mídia, dos intelectuais e da própria classe, principalmente por Edson Nery. Não por menos, já que simplesmente reergueu a BN em plena ditadura militar. Para dar uma noção bastante geral do que Jannice conseguiu realizar em oito anos de gestão, e por causa da brevidade que um blog pede, apresentamos algumas de suas principais ações e anseios.
Ela se preocupava com a preservação e a conservação do acervo, que vinha crescendo sem muito controle. Na época, o tamanho do acervo da BN era desconhecido, sendo inventariado pela última vez há décadas atrás. Só no relatório de 1973 isso foi atualizado: a BN guardava cerca de 3 milhões de peças. Em seu primeiro relatório, disse que “[…] parte do acervo foi encontrado em estado de verdadeira calamidade”6. Diante dessa situação, conseguiu recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Econômico para tratar o acervo, tarefa realizada por uma empresa particular e supervisionada por professores do Instituto de Biologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Depois, conseguiu a instalação de uma pequena oficina de encadernação.
Buscando otimizar a biblioteca, a gestão assinou um convênio com a Fundação Getúlio Vargas, patrocinado pelo Ministério da Educação. Assim, foram elaborados cinco projetos: Projeto A (Organização administrativa), Projeto B (Sistema do pessoal), Projeto C (Espaço físico), Projeto D (Racionalização do trabalho) e Projeto E (Sistema de planejamento). O resultado foi uma “verdadeira radiografia da instituição, pois caracterizava nitidamente a situação real da Biblioteca Nacional […]”7. Claramente, nem tudo foi possível, mas podemos ver a seriedade, a técnica e a visão administrativa de Jannice.
O Depósito Legal era outra das preocupações da bibliotecária. Sabendo que essa é, se não a maior, uma das maiores funções de uma biblioteca nacional, se esforçou para aumentar a captação de livros. Em seu primeiro ano, constatou que as editoras encaminhavam apenas 20% da produção. Dois anos depois, esse percentual aumentou, segundo ela, para 60%8. Até tentou uma atualização do então Decreto nº 1.805/1907, mas nada conseguiu.
Observando o valioso acervo de jornais antigos guardados na BN, buscou a microfilmagem como estratégia de preservação e difusão. A BN já microfilmava seus periódicos há 20 anos, mas nada comparado ao que aconteceu a partir da gestão de Jannice. Em 1973, essa ação foi impulsionada e, quatro anos depois, foi instituído o Plano Nacional de Microfilmagem de Periódicos (PLANO).
Até aí, o acervo estava sendo observado e, na medida do possível, tratado. Mas e o pessoal para fazer tudo isso? Como treiná-los para as atualizações constantes das tecnologias e práticas? Jannice percebeu isso e logo procurou mudar esse cenário. Dessa forma, foram oferecidos cursos necessários como Panorama da moderna biblioteconomia, Introdução aos computadores e Administração geral. E quando Jannice não encontrava um especialista no Brasil, buscava fora. Em 1974, por meio da UNESCO, conseguiu a vinda da dra. Maria di Franco, da Biblioteca Vallicelliana (Roma), que analisou as necessidades de conservação/restauração da BN.
Enfim, poderíamos nos alongar e fazer uma grande pesquisa sobre a gestão de Jannice (assim como fez Grings em sua tese). Porém, preferimos mostrar o quadro abaixo com algumas das principais realizações da bibliotecária celeste, como dizia Antonio Houaiss.
Principais realizações
– Implementação parcial da reforma administrativa;
– Recuperação física e tombamento do edifício sede pelo IPHAN;
– Implementação da microfilmagem visando à preservação do acervo, com a instituição do Plano Nacional de Microfilmagem de Periódicos Brasileiros (PLANO);
– Desenvolvimento do Formato CALCO (Catalogação Legível por Computador);
-Inventário do acervo de periódicos e processamento por computador do acervo correspondente;
– Inventário das diversas seções e Divisões de Referência Especializada, pela primeira vez realizado na BN, de forma minuciosa e sistemática;
– Instalação de telex e do terminal de computador PRODASEN (ligação direta do sistema do Senado para receber informações de legislação);
– Estudos preliminares, elaborados por Comissão Técnica, para fundamentar o projeto de um futuro Edifício-Anexo para a BN;
– Atualização das publicações periódicas: Anais da Biblioteca Nacional e Boletim Bibliográfico;
– Implantação do Sistema ISBN;
– Designação da BN, pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, como biblioteca depositária das fitas magnéticas do Formato MARCII;
– Aumento das pesquisas sobre conservação e restauração de documentos com a participação de técnicos estrangeiros e nacionais.
Fonte: Amadeu (2005); Fujita (2016)
Além de ter trabalhado na BN, integrou a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e foi cedida ao Governo do Estado do Rio de Janeiro para planejar a então nova Biblioteca Pública Estadual (atual Biblioteca Parque Estadual), que seria implantada nos anos 1980. Ainda foi bolsista Fulbright, da Comissão para Intercâmbio Educacional entre EUA e Brasil, em 1988. Dois anos depois, retornou à já Fundação Biblioteca Nacional como assessora do presidente Affonso Sant’Anna, que lhe considerava “notável”.
Faleceu em seu aniversário de 78 anos, em 2005, no Rio de Janeiro, onde viveu toda sua vida. Há uma biblioteca com seu nome, em Andrade Costa, Vassouras, RJ. Na sua missa de 1 mês, realizada na igreja de Santa Luzia (RJ), Liana Amadeu, funcionária da BN, disse o seguinte6:
Como bibliotecária, Jannice empenhou sua consciência profissional e sua dedicação pessoal a serviço de uma tarefa complexa, em benefício da cultura nacional. A Biblioteca Nacional, na pessoa de todos os bibliotecários que compõem seu quadro funcional, reverencia sua memória e lhe presta essa singela homenagem.

Sem dúvida alguma, Jannice Monte-Mór deixou a sua marca na Biblioteconomia e na história brasileiras. Corajosa, encarou a missão que muitos temiam e poucos acreditavam. Em plena ditadura militar, batalhou incansavelmente para a preservação e o desenvolvimento da nossa Biblioteca Nacional. Técnica, com um extraordinário talento administrativo e sempre muito elegante, seus relatórios são documentos valiosos não só para a instituição, mas para a história da Biblioteconomia. Naturalmente, não venceu todas as lutas que travou ou que lhe foram impostas, mas conseguiu muito em tempos muito mais difíceis em relação à capacitação, tecnologia e, claro, recursos. Em resumo, sua gestão sempre será lembrada como uma verdadeira revolução administrativa e sua figura será sempre motivo de orgulho para todos as bibliotecárias e bibliotecários do presente e do futuro.

Com essa homenagem simples, deixo aqui a minha mais sincera admiração e o mais profundo respeito à Jannice Monte-Mór.
Notas
1 GRINGS, 2016, p. 75
2 op. cit., p. 97
3 Ibid., p. 96
4 Ibid., p. 98
5 Ibid., p. 99
5 AMADEU, 2005, p. 3
6 MONTE-MÓR, 1972, p. 363
7 Ibid., p. 367
8 Id., 1976, p. 206
Referências
AMADEU, Liana. Palavras sobre Jannice Monte-Mór. Boletim CRB-7, Rio de Janeiro, v. 30, n. 3, p. 3, 2005, . Disponível em: http://www3.crb7.org.br/wp-content/uploads/2018/07/V30_n3_jul-set2005.pdf. Acesso em: 03 mar. 2019.
GRINGS, Luciana. O leigo e a especialista: memórias da administração da Biblioteca Nacional nas décadas de 60 e 70. 2018. Tese (Doutorado em Memória Social) – Programa de Pós-Graduação em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
MONTE-MÓR, Jannice. A Biblioteca Nacional em 1971. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 91, p. 358-373, 1972. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais.htm. Acesso em: 25 nov. 2018.
MONTE-MÓR, Jannice. A Biblioteca Nacional em 1974. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 94, p. 199-212, 1976. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais.htm. Acesso em: 25 nov. 2018.
Sugestões
ALMEIDA, Inez Valente de. Celebrando a mulher na Biblioteconomia Brasileira: biobiliografia e diretório. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Biblioteconomia) – Escola de Biblioteconomia, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. 132 f. Disponível em: http://www.unirio.br/unirio/cchs/eb/arquivos/2018.1/Inez%20Valente%20de%20Almeida.pdf. Acesso em: 03 mar. 2019.
Relatórios de Jannice Monte-Mór e vários outros, desde 1876: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais.htm
Para ver e ouvir Jannice:
DOCUMENTÁRIO sobre a Biblioteca Nacional (1974). Disponível em: https://youtu.be/d1qow2ccg9s?list=PL3lT3DyHqC7votsn1sXv1uMtQQJCHt8L0. Acesso em: 03 mar. 2019.
Fonte: Frontispício