Livros com histórias e desenhos pensados para crianças e adolescentes conseguem alcançar aspectos linguísticos e estéticos, ajudando a formar cidadãos plenos e com capacidade crítica
Texto por Mariana Mesquita

Foto: Reprodução
Desde 2002, a cada 18 de abril o Brasil comemora o Dia Nacional da Literatura Infantil. E, apesar da crise econômica estar afetando o mercado livreiro como um todo, sempre há motivos para celebrar o fato. “É como no dia do aniversário de alguém querido. A gente comemora a existência desse objeto. E comemorar o livro é comemorar as pessoas que ainda acreditam que ele é um portal de comunicação onde você consegue acessar afetos, memórias e senso crítico, também. Porque quando a gente lê, a gente pensa”, destaca Luciano Pontes.
Ele é autor e ilustrador de livros infantis – e também vem atuando como curador do Festival Internacional de Literatura Infantil de Garanhuns (Filig), que no ano passado realizou sua quarta edição. “É muito importante comemorar, porque – independentemente do tempo e do espaço – o livro é um dos produtos culturais mais importantes que existem, e quando é feito para as crianças isso assume uma importância ainda maior, porque é assim que se formam novos leitores”, reforça por sua vez Rosinha, premiada ilustradora e escritora do segmento.
Ainda menosprezado por algumas pessoas, que não enxergam a dimensão de sua importância e complexidade, os livros feitos para crianças e adolescentes vêm alcançando um patamar de excelência nas últimas décadas.
“Eu sou autor e ilustrador e meu primeiro livro infantil foi feito em parceria com o etnólogo Pierre Verger, na década de 1980, falando sobre lendas africanas. De lá para cá, a coisa se profissionalizou e melhorou bastante. Tivemos momentos de pico, como em 2014, quando Roger Mello tornou-se o primeiro ilustrador latinoamericano a receber o prêmio Hans Christian Andersen, o mais importante na área da literatura infantil”, relembra Enéas Guerra, que comanda em Salvador (BA) a editora Solisluna, detentora de um catálogo onde as obras infantojuvenis se destacam.
Para Rosinha, vencedora de prêmios importantes como o Jabuti, o auge da produção para o setor, no Brasil, se deu após a criação de políticas públicas específicas, como o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Desenvolvido a partir de 1997, ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o programa tomou impulso nas gestões de Lula e Dilma Rousseff.
“No início, os livros eram em preto e branco, pequenos, e só quem vencia as concorrências eram as grandes editoras. Quando Lula entrou, houve uma democratização nesse processo. Começou a haver limite de títulos por editora, e só 10% das obras podia ser de livros estrangeiros, traduzidos. A produção foi incentivada. Foram realizadas feiras no Brasil inteiro, os autores e ilustradores passaram a ser reconhecidos e receber prêmios fora do País”, relata.

“Nessa época, houve uma ampliação real dos acervos das bibliotecas das escolas públicas de todo o Brasil, e também uma qualidade maior no que estava sendo distribuído, porque tinha mais produção, mais oferta de obras entre as quais se escolher”, acrescenta Luciano Pontes.
Porém, na gestão de Michel Temer, diz Rosinha, o PNBE foi “completamente desvirtuado, enquanto política pública de acesso ao livro”. Apesar disso, em 2018 houve edital, seleção de livros e publicação em diário oficial de uma lista de obras que seriam distribuídas às escolas públicas.
“Só que a gente já está no quarto mês de 2019 e o governo de Jair Bolsonaro, até o momento, não resolveu essa questão nem está dando conta de se organizar para cumprir o que Temer havia deixado determinado”, critica ela, alertando para o fato de que várias editoras pequenas já fecharam as portas desde 2016. “São três anos em que a gente faz no máximo dois livros a cada ano, quando antes fazia de oito a dez. Vários autores e ilustradores vêm sendo obrigados a buscar outros trabalhos. Então, o momento é de muito receio em relação ao que vem pela frente”, lamenta.
Objetos para a alma
“O Nordeste tem excelentes autores, muita gente boa trabalhando em Pernambuco, no Ceará. Inclusive, enquanto fonte de inspiração o Nordeste é inesgotável, tanto que muitos autores de livros infantis do sul do País vêm se inspirar por aqui”, conta Enéas Guerra – ele mesmo, um paulista que se apaixonou pela Bahia e para lá se mudou, desde os anos 1970. “O livro faz parte da formação dos seres humanos, como cidadãos plenos. O livro tem essa tarefa, é capaz dessa magia”, ressalta.
“Não é um objeto comestível, é algo feito para a alma. Não consumindo esse tipo de produto, a gente traz o diagnóstico de uma sociedade que está adoecendo”, destaca Luciano Pontes, para quem a boa literatura infantojuvenil consegue dialogar “com todas as infâncias”.

“É muito importante ler a literatura direcionada a esse tipo de público, porque ela toca em aspectos linguísticos e estéticos. Ela não é só texto. Alia duas linguagens, a narrativa e a não-verbal, de maneira muito sofisticada. Quando pegamos um livro infantil, estamos diante de um artefato que é um conjunto artistíco, onde há um diálogo integrado”, descreve.
Para Luciano, é importante que se pense o livro nesse sentido. “É um projeto gráfico, tipográfico, estético, narrativo, construído em prol de um sentido, de uma história. E isso às vezes acontece de forma completamente diferente do que ocorre na obra de literatura dita adulta”, explica. Ele lamenta o fato de que ainda hoje, “independentemente do público, da inserção na escola e das políticas de governo, a literatura ainda é muito mal vista e pouco lida, especialmente a infantojuvenil”. “É a concretização da negação do direito à cultura. A literatura perpassa essa questão de não se ter resposta à necessidade humana de ter acesso à cultura”, finaliza.
Legado polêmico de Lobato
Abril é um mês especial quando se fala em livros voltados para a infância. O Dia Internacional do Livro Infantil é comemorado no dia 2, em homenagem ao nascimento, em 1805, do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (autor de clássicos como “A Pequena Sereia” e “O Patinho Feio”).
Mas, no Brasil, a data que ganhou mais destaque foi 18 de abril, dia do aniversário de Monteiro Lobato, criador de um dos maiores legados voltados para esse público. De sua imaginação, surgiram personagens que marcaram várias gerações de crianças, desde que seu primeiro livro infantil, “A menina do narizinho arrebitado”, foi publicado, em 1920. Nascido em 1882 e falecido em 1948, Lobato inseriu Narizinho, Pedrinho, Dona Benta, Tia Nastácia, Visconde de Sabugosa e, especialmente, Emília na memória afetiva brasileira.
Quase um século depois dessa história ter começado, os direitos autorais do Sítio do Picapau Amarelo, junto com as demais obras de Monteiro Lobato, deixaram de ser protegidos (a lei diz que eles perduram por 70 anos após a morte do autor). Como agora são de domínio público, desde o dia 1º de janeiro qualquer editora pode publicar as histórias do “pai da literatura infantil brasileira” – sejam as histórias originais, sejam adaptações ou novos textos que remetam a ele e a seus personagens.

Extremamente queridos do público, os personagens centenários também vêm precisando lidar com as mudanças culturais que afetam nossa sociedade. O autor vem sendo acusado de expressar ideias racistas em suas obras, especialmente quando se refere à famosa Tia Nastácia (constantemente menosprezada por Emília em suas características negras e pelo fato de não saber escrever).
Em 2010, o livro “Caçadas de Pedrinho”, de 1933, foi denunciado por militantes negros como sendo uma obra racista, levando o Conselho Nacional de Educação (CNE) a vetar a distribuição da obra nas escolas públicas brasileiras. Na sequência, em 2011, o Ministério da Educação (MEC) publicou um parecer contrário à proibição do livro, recomendando que a leitura seja feita aliada a uma política antirracista dentro do sistema de ensino e que as novas edições contenham uma nota técnica contextualizando o momento histórico em que o livro foi produzido.
Fonte: Folha PE