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O que precisamos para o livro e a leitura? Bibliotecas com bibliotecários

Texto por Maria das Mercês Apóstolo

Maria das Mercês Apóstolo

Quem se debruçar sobre a história da leitura, principalmente aquela relatada por Guglielmo Cavallo e Roger Chartier em sua esplêndida obra “História da leitura no mundo ocidental”, perceberáque o ato de ler sempre esteve associado a privilégios: privilégio de status social que possibilitou o aprendizado da leitura; privilégio de condição financeira que permitiu a aquisição de livros; privilégio do desenvolvimento de uma sensibilidade para o belo contido nas palavras, nas narrativas; e, principalmente, privilégio do ócio, do tempo não dedicado ao trabalho e à subsistência, e dispendido à leitura.

O entendimento do acesso à leitura como direito é muito recente.

Sendo a escrita produto de criação estamental, seja de uma casta de sacerdotes na antiga Mesopotâmia ou de monges cristãos na Alta Idade Média, podemos dizer que a leitura, tal como a compreendemos hoje, exercício da mente e desfrute do espírito, começou a ser exercida com o aparecimento do alfabeto. Foi a simplificação dos signos que permitiu que a escrita se tornasse plena das possibilidades de ser lida por muitos. Mas, ainda por vários séculos, a leitura manteve-se encerrada num perímetro restrito. E antes de tornar-se meio de formação, de desvelamento e de questionamento, ela foi por muito tempo, e podemos dizer que ainda é, testemunha e instrumento de poder, disseminando narrativas de opressão e de mando, ainda que justificadas por uma aspiração ordenadora e docilizadora. A leitura, com sua capacidade de gerar sentido em âmbito público e privado, está indissociada do exercício da autoridade, restrita a um grupo seleto. Le Goff ressalta que o documento é produto de um centro de poder. Dito de outro modo, quem registra a narrativa exerce a prerrogativa, não raramente absoluta, de dispor sobre sua hermenêutica, estabelecendo, assim, seus sentidos, seus destinatários e suas excepcionalidades.

Será com a tipografia que a leitura irá vislumbrar a possibilidade de ser exercida por muitos. Segundo Burke em sua “Uma História social do conhecimento”, ao surgir em um século estilhaçado por dissidências políticas e religiosas, a tipografia tornou-se um efetivo instrumento de divulgação de ideias. Todas as narrativas procuravam legitimar-se por meio do impresso. E para isso, tal como no passado e tal como ainda hoje, as sociedades fizeram da alfabetização uma arma de propaganda. E como toda arma, a leitura poderia ser perigosa se em mãos erradas. Diante da ameaça latente, estabelece-se um arsenal de instrumentos de vigilância e de mediação. A tarefa de especialistas no universo das palavras, de bibliotecários a filósofos, de forte teor moral, era dupla: dificultar, sobremaneira, o acesso a livros vistos como de teor nocivo, e potencializar leituras consideradas edificantes, seja do ponto de vista individual ou coletivo. Nesse sentido, além da censura e de outras práticas de filtragem, as estratégias políticas tinham por fim que a mensagem autorizada encontrasse o seu caminho na mente do leitor.

A partir dessas preocupações podemos inferir que a leitura, mesmo ainda dentro do campo dos privilégios, começa a se tornar elemento de preocupação pública. Preocupação esta que se amplia e se relaciona estreitamente com o desenvolvimento dos sistemas educativos no século XIX, com a generalização da instrução básica pública e o aumento da produção de livros, jornais e outros materiais de leitura, trazendo para a discussão questões sobre o desenvolvimento, fortalecimento e sobrevivência de uma indústria editorial. O livro e a sua leitura passam a ser vistos como elementos fundamentais, sustentáculos dos novos modelos econômicos, políticos e culturais das sociedades do Estado Moderno.

O surgimento das novas tecnologias que marcaram o século XX e XXI, reacende essas preocupações de garantir ao livro, seja impresso ou digital, um espaço duradouro e efetivo no universo dos equipamentos culturais.

No caso do Brasil é muito interessante acompanharmos essa progressiva introdução da pauta do livro nas agendas do poder público. É interessante porque ao mesmo tempo em que observamos uma veemente defesa do livro como objeto, como mercadoria, não conseguimos observar, paralelamente, a defesa dos espaços onde ele poderia ser potencializado. As bibliotecas estão ausentes das políticas para o livro e a leitura, e só recentemente e de maneira tímida as palavras livro, leitura e biblioteca se alinharam em uma mesma frase.

Os componentes da cadeia produtiva do livro ignoram as bibliotecas. Temos inúmeras iniciativas de fomento à leitura, de distribuição de livros, mas poucas de apoio e valorização das bibliotecas como espaços por excelência no desenvolvimento e na fruição da leitura.

Monteiro Lobato disse que “um país se faz com homens e livros”. Eu digo que “um país se faz com homens, mulheres, crianças, livros e principalmente bibliotecas”.

Sem as bibliotecas e seus bibliotecários, o livro será mera peça de mercadoria, e a leitura será́ arma de propaganda de narrativas únicas. Afinal, é a biblioteca que pode oferecer gratuitamente a diversidade e as várias perspectivas facetadas de narrativas; é o bibliotecário, por sua natural atividade de mediador, que ajuda na construção de um pensamento crítico.

E tudo que precisamos na sociedade brasileira desse momento é de mentes capazes de pensar com pluralidade e alteridade, aptas a discernir entre o fato e a lenda, entre a “doxa” e a episteme.

* Bacharel em Biblioteconomia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Bacharel em História pela Universidade de São Paulo e Pós Graduação em Metodologia da História e História Paulista. Professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Foi vice-presidente do Conselho Regional de Biblioteconomia- 8a. Região, gestão de 2009 a 2011. Conselheira do CFB, 2019–2021. Tem experiência na área de Ciência da Informação, com ênfase em História, Arquivística e Leitura, atuando principalmente nos seguintes temas: projetos de organização de bibliotecas e arquivos, história do livro e mediação à leitura. Coautora do livro Fabci, retrato de uma escola.

Texto também publicado no documento

CONSELHO REGIONAL DE BIBLIOTECONOMIA 8ª REGIÃO. Bibliotecas e bibliotecários na pauta política: reflexões e propostas. São Paulo: CRB-8, 2020.

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