Texto por Ueliton dos Santos Alves
A proposta desse texto é contribuir com a discussão das teorias decoloniais dentro do campo da Ciência da Informação e Biblioteconomia, na figura da professora doutora Maria Aparecida Moura peço a benção e licença a todas/os que vieram antes, e também a todas/os que agora estão propondo esse debate1.

Para pensar decolonialidade é preciso antes conhecer o que é colonialidade. Segundo Aníbal Quijano (2014), a colonialidade trata sobre a constituição de um padrão de poder que não se restringe às questões formais de exploração ou dominação colonial, trata-se de uma ideia que envolve também as diversas formas pelas quais as relações intersubjetivas se articulam a partir de posições de domínio e subalternidade. A colonialidade pode então, ser lida como uma prática que através da ciência moderna/colonial produziu um modelo único, universal e objetivo tendo como referência a Europa.
Um pouco da história dos Estudos Decoloniais
Na década de setenta, formava-se no sul asiático o Grupo de Estudos Subalternos, cujo principal projeto era analisar criticamente a historiografia da Índia feita por ocidentais europeus e também a historiografia eurocêntrica produzida por indianos. A partir dos movimentos insurgentes dos intelectuais indianos desdobra-se nos países que compõem o bloco chamado de Latino Americano um manifesto que apontava para a necessidade de uma releitura das narrativas nacionais, capaz de detectar a ausência de representações da ação e de narrativas das comunidades subalternas, destacadamente ameríndias e de matriz africana.

É nesse contexto que se dá a constituição do Grupo Modernidade/Colonialidade no final dos anos 1990, que atualmente leva o nome de Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (CMD). Segundo Arturo Escobar (2003), o CMD tem como principal força orientadora uma reflexão continuada sobre a realidade cultural e política latino-americana, incluindo o conhecimento subalternizado dos grupos locais. Para o autor, trata-se de um movimento teórico-metodológico que acabou dando origem à escola de pensamento latino-americana denominada de Estudos Decoloniais, e que alguns autores também chamam de Giro Decolonial (BALESTRIN, 2013)
A prática bibliotecária e a decolonialidade
Quando se discute sobre a função da bibliotecária/o, existe um papel central no desenvolvimento de suas atividades, independente de qual área vai escolher atuar. Ao fazer a escolha para o curso na Universidade de São Paulo, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP) me deparei com a seguinte definição:
O curso está inserido na área de Ciências Sociais Aplicadas e visa formar profissionais da informação aptos para atuarem de forma crítica, ética e humanista nos diversos segmentos do mercado no que concerne ao planejamento, execução e avaliação de atividades inerentes à implantação, gerência e desenvolvimento de unidades de informação, bem como a compreensão dos processos socioculturais relacionados à produção, circulação e apropriação da informação. Para tanto, o profissional formado no curso torna-se apto a aplicar conceitos e práticas na gestão, armazenamento, organização, distribuição e preservação da informação. (BIBLIOTECONOMIA E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 2020, grifo nosso)
Ao me deparar com a possibilidade de ser um profissional que atuaria de forma crítica, ética e humanista, senti que essa poderia ser a profissão para minha vida, mas ao longo do meu contato com a academia e com minha área de atuação, senti que o aspecto que mais teria que desenvolver, era senso crítico. Na medida em que desenvolvi minha consciência social e racial, tudo isso enquanto me “formava”, e depois quando passei a atuar como bibliotecário, foi possível notar que infelizmente o campo profissional ao qual tinha escolhido, ainda tinha essas discussões como fator secundário, uma vez que, toda sua base epistemológica se estruturava a partir de uma visão eurocêntrica.
Ao identificar a isso, instalou-se uma contradição que me fez repensar enquanto profissional: estaria eu, perpetuando uma narrativa única baseada em ideias opressoras? Como romper com essa lógica?
Tais questionamentos me levam de encontro as teorias decoloniais, ao entender sua proposta passo a pensar na possibilidade de aplicá-la em minha prática bibliotecária. O exercício de relacionar as teorias decoloniais com a área da Biblioteconomia e Ciência da Informação me reconectou com a descrição que me fez sentir estar escolhendo a profissão certa. A decolonialidade me apresentou a necessidade de romper com uma narrativa única, a partir disso, repenso toda a narrativa da história de organização e disponibilização do conhecimento.

É a partir desse novo olhar que os convido a pensar como os slams, que são batalhas de poesia falada, podem ser considerados manifestações artísticas culturais para incorporar a nova ideia de conhecimento disponível em uma biblioteca, considero-o a materialização da fusão entre a biblioteca e a tradição da oralidade, os slamers através de suas performances, mixam o ato de informar com a arte de contar história, resultando em uma junção que promove um novo cenário cultural, que ainda tem espaço para crescimento, que movimenta e altera uma visão restrita do que é conhecimento2.
Atividades como o slam exemplificam as diversas outras que podem ser vistas como parte do acervo de uma unidade de informação, é uma prática que surge de maneira orgânica que na maioria das vezes ocorre em espaços abertos, como praças, mas que pode ser adotada como uma tática para trazer novos conhecimentos e consulentes para biblioteca.
Uma biblioteca ao abrir seu espaço para movimentos que surgem do público estão rompendo com uma lógica colonial de enxergar a periferia como um espaço que necessita acessar a cultura que vem da academia, que na atualidade é considerada o centro do da produção de conhecimento, aderir atividades como o slam é reconhecer que a periferia é capaz de produzir sua própria epistemologia.
Autores que fundamentam os estudos decoloniais apresentam pesquisas que demonstram que a produção e o controle de informação são instrumentos fortalecedores de uma sociedade baseada na colonialidade. Para Anibal Quijano, um grande intelectual da teoria decolonial, “A colonialidade se reproduz em uma tripla dimensão: a do poder, do saber e do ser.” O monopólio sobre determinados conhecimentos possibilita a constituição de uma narrativa única, tal narrativa pode ser usada para justificar atrocidades como a colonização de outros povos. Esse tipo de monopólio, Quijano vai chamar de colonialidade do saber, que na interpretação de Santos (2007), em linhas gerais é uma narrativa que:
Portanto, excluiu outros saberes e outras formas de interpretar o mundo, desautorizando epistemologias da periferia do ocidente. Tal colonialidade do saber é representada na geopolítica do conhecimento, a partir da qual a razão, a verdade e a ciência são atributos possíveis nas – e das – metrópoles, cabendo aos territórios (ex) coloniais e seus sujeitos o status de objetos, classificados como populares, leigos, naturais, ignorantes, sem lei (SANTOS, 2007, p.72).
Usando do poder de controlar o saber é que surge o terceiro elemento operante, a colonialidade do ser, que é a capacidade de destituição da existência, da condição de humanidade dos outros, dos povos não europeus, é a exterioridade negada. A partir dessa tríade – a colonialidade do poder, do saber e do ser – fundamenta teorias que atribuem quem são e como devem viver cada povo.
A biblioteca como instrumento da decolonialidade
Os três conceitos utilizados pela colonialidade para se estabelecer, são conceitos muito presentes dentro da atuação profissional da área da informação, pois já que a informação é poder, e que as bibliotecas são importantes instrumentos na construção do saber, logo tratam-se de espaços que possibilitam a transformação do ser, sendo assim pode-se dizer que a biblioteconomia sempre teve uma função decolonial, só esteve e ainda está um pouco distante dela.
A partir dessa lógica, bibliotecárias/os nos seus mais diversos campos de atuação tem o compromisso e a responsabilidade com o combate a colonialidade, bibliotecas em suas diferentes tipologias tem como missão romperem com a concentração e controle do conhecimento, suas/seus profissionais devem oferecer condições tanto físicas quanto epistemológicas que permitam aos consulentes construírem com as informações disponibilizadas o seu conhecimento e sua subjetividade, o caráter pedagógico de uma biblioteca resulta em pessoas emancipadas, sendo assim, o trabalho e a existência de bibliotecas são ferramentas fundamentais para a luta decolonial.

Ao longo da história da literatura, muitos autores negros não foram identificados e retratados como negros, se é verdade que a cor do autor não importa para o leitor, por que embranqueceram esses autores? Por que ainda hoje é tão difícil ver editoras que possuem em seus catálogos uma política de paridade de gênero e de raça? O que sustenta a exotização de autoras e autores marginalizadas/os, que muitas vezes têm suas obras compradas apenas por curiosidade, simples e puramente para entender o que escritores “marginais” criam. Carolina Maria de Jesus, por exemplo, teve um número expressivo de vendas na sua primeira obra, as demais obras não fizeram tanto sucesso, e isso se atribui a que, não foi por perda de qualidade literária, mas sim, porque o efeito racista e classista fez com que a curiosidade fosse diminuindo.
No momento em que a palavra representatividade destaca-se em diversas discussões, é preciso ter cuidado para não confundir representatividade com representação, o fato de corpos marginalizados aparecerem em determinados espaços, não quer dizer que eles estão alí com a intenção de levantar uma discussão sobre sua condição de sujeito marginalizado, por exemplo: Se a Tia Anastácia é quem trabalha na cozinha do Sitio do Pica-Pau Amarelo e desenvolve todas as receitas, por que a Dona Benta é quem dá nome a farinha e os livros?
Percebam que nos momentos de valorização dos saberes, quem ganha destaque são os corpos normatizados, os corpos marginalizados estão sempre ligados ao instinto e trabalho físico. Ter a Tia Anastácia presente no texto não a torna sinônimo de representatividade, por vezes, características atribuídas a ela apenas reforçam um imaginário estereotipado que cumpre com o modelo de subalternidade estabelecido pela lógica colonial. A Tia Anastácia ao invés de ter suas características físicas ressaltadas, poderia protagonizar situações que a humanizasse e demonstrasse o seu intelecto.
Quando uma biblioteca começa a enxergar situações como essa, suas/seus profissionais entendem que para de fato cumprir com o seu juramento profissional, precisam adotar políticas que auxiliem na decolonização de seus acervos e de seu espaço, possibilitando assim, que os exemplos apresentados não voltem a se repetir, que autoras e autores marginalizados sejam reconhecidos pelo valor do seu trabalho e não pela sua condição, que corpos marginalizados não sejam usados como atrativos que reforçam uma narrativa de subserviência colonial.
Em suma, pensar uma biblioteca decolonial é produzir um diagnóstico e um prognóstico afastado e não reivindicado pelo mainstream do pós-colonialismo, envolvendo diversas dimensões relacionadas a colonialidade do poder, saber e ser. Cabe ressaltar que não se trata de eliminação ou interdição de determinados saberes, o processo de decolonização não deve ser confundido com a rejeição da criação humana realizada pelo norte global e associado com aquilo que seria genuinamente criado no sul, no que pese práticas, experiências, pensamentos, conceitos e teorias.
Nesse cenário as/os profissionais da informação têm a oportunidade e o dever social de combater essa lógica, cabe a essa/esse profissional contribuir na missão de combate a colonialidade do saber. Embora atuem em diferentes espaços informacionais, há um ponto que os interseccionam, a busca incansável pela democratização das mais variadas informações, dos conhecimentos e dos saberes. Quando o pensamento decolonial lido como contraponto é ampliado para a biblioteconomia, que é uma ciência social aplicada, demonstra que existe uma necessidade de repensar a área, de suas práticas e de sua teorização, para dar espaço aos saberes e práticas não canonizados.
Notas
1 Assistam à aula: O papel da biblioteconomia na redução das desigualdades – Epistemicidio, subalternidade e a naturalização do privilégio – https://www.youtube.com/watch?v=ZEcD1aSLD_0
2 Idealizado por Emerson Alcalde, o Slam da Guilhermina surgiu em 2012 junto com Vander Che e depois completado com Cristina Assunção e Uilian Chapéu. O projeto fomenta a literatura na periferia da zona leste de São Paulo por meio da poetry slam, ou poesia falada. O movimento abre espaço para diferentes vertentes da poesia, mas o que mais é recitado são poesias de resistência. Textos autorais de poetas marginais que vivem na periferia. “A poesia que se faz nos slams, batalhas de poesia, e saraus de periferia são poesias marginais, pois estão tanto a margem do mercado editorial quanto da sociedade”, explica Emerson. Disponível em: https://medium.com/@cari./um-grito-de-resist%C3%AAncia-slam-da-guilhermina-a84c109778b5
Referências bibliográficas
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p.89-117, ago. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n11/04.pdf>. Acesso em: 08 ago. 2019.
BIBLIOTECONOMIA E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO.: Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo, 2020. Disponível em: https://sites.usp.br/calourofilo/cursos/biblioteconomia-e-ciencia-da-informacao/. Acesso em: 8 maio 2020.
DUSSEL, Enrique. 1492. El encubrimiento del outro. Hacia El origen Del mito de La modernidad. La Paz: Plural Editores, 1994.
ESCOBAR, Arthuro. Mundos y conocimientos de otro modo: el programa de investigación modernidad/colonialidad latinoamericano. Tabula Rasa, nº 1, Bogotá, Colombia, 2003, pp.58-86.
MIGNOLO, Walter Postoccidentalismo: el argumento desde América Latina, In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago & MENDIETA, Eduardo (coords.). Teorías sin disciplina: latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate. México: Miguel Ángel Porrúa. 1998. Disponível em: < https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000186&pid=S0103-3352201300020000400028&lng=en> Acesso em: 19 de ago. 2019.
QUIJANO, Anibal. La tensión del pensamiento latino americano [1986]. In: ___. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso, 2014a. p.697-704. Disponivel em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&pid=S0103-4014201800030039100032&lng=en. Acesso em: 19 de ago. 2019.
Figuras
Figura 1: https://universes.art/de/specials/2016/space-to-dream/torres-garcia-zoom
Figura 2: https://www.sp-arte.com/editorial/o-que-e-a-arte-decolonial/
Figura 3: https://www.facebook.com/photo/?fbid=2414781865298658&set=a.2414775781965933
Figura 4: http://jornalempoderado.com.br/ler-e-o-melhor-caminho/
Vídeo
Maria Aparecida Moura – https://www.youtube.com/watch?v=ZEcD1aSLD_0
*Ueliton dos Santos Alves é Bacharel em Ciências da Informação, da Documentação e Biblioteconomia pela USP- Ribeirão Preto. Entende-se como um Bibliotecário agitador cultural. Trabalha na SP Escola de Teatro onde coordena uma biblioteca especializada em teatro, arte e cultura. Atua em uma proposta decolonial para o acervo, buscando por novos referenciais e narrativas que ajudem a descontruir uma visão eurocêntrica das artes. Com as provocações que surgiram a partir do fortalecimento de sua consciência racial e pelas demandas apresentadas em seu espaço de atuação profissional, passa a buscar referências decolonizadoras para pensar o campo da Biblioteconomia.