Mateus Santana, à frente da Bienal do Livro da Quebrada, fala sobre o impacto da leitura na vida das pessoas; veja como ajudar
POR PAULA JACOB | FOTOS DIVULGAÇÃO
Apesar de o Brasil ser um país com uma pluralidade de histórias e contadores, o mercado editorial ainda está restrito aos escritores homens. Segundo dados levantados pelo Centro de Pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), 70% dos livros publicados entre 1965 e 2014 eram de homens. Destes, 90% eram de homens, brancos, de classe média alta, nascidos no eixo Rio-São Paulo – algo longe de ser a realidade da maioria da população brasileira. O acesso à literatura, portanto, também se fecha nesta “bolha intelectual”, afastando interessados e possíveis leitores de novas histórias. Insatisfeito com este cenário, Mateus Santana desenvolveu a Bienal do Livro da Quebrada, um evento pensado para democratizar o acesso à literatura nas periferias do país.
“A literatura já é um espaço de pouco acesso. Na periferia, ela ainda chega de forma agressiva, em uma linguagem que a gente não entende, porque viemos de uma formação educacional ruim”, explica Mateus em entrevista à Casa Vogue. O evento ainda está em fase de pré-produção e captação de recursos, mas possui diretrizes bem estabelecidas. Além da fomentação da leitura na periferia, Mateus quer trazer apresentações de slam, shows e oficinas de escrita para inspirar outros jovens. Nascido na Ceilândia, cidade satélite do Distrito Federal, e crescido na Samambaia, ele conta o quanto a literatura foi importante no seu processo de autoconhecimento e no crescimento profissional. “O acesso aos livros me ajudou a escrever melhor, me inspirou a cursar faculdade [ele é formado em Publicidade e Propaganda] e a me tornar um escritor profissional”, pontua ele, que é autor de O amor ao próximo é legalizado. Abaixo, confira o bate papo sobre a proposta da Bienal do Livro da Quebrada, a importância dos livros na periferia e como você pode ajudar:
Como surgiu a ideia da Bienal do Livro da Quebrada?
A ideia do projeto veio de uma inquietação minha. Eu sou autor também e, como negro, escritor, morador de periferia, notava o quanto o mercado literário é muito excludente. Ele ainda publica, em sua grande maioria, o perfil do homem branco, rico e de determinadas cidades do país. Consequentemente, os eventos literários reproduzem isso, já que são essas pessoas que estão sendo vistas no mercado literário. Eu, por exemplo, enfrentei muitas dificuldades para publicar meu primeiro livro. Acabei assinando com uma editora depois de três anos negociando. E mesmo depois de publicar, não tive qualquer suporte deles. Enfim, foi muito estressante. Foi vendo esses eventos literários em grandes centros urbanos, com a mesma gama de artistas, de forma extremamente excludente, que decidi que queria criar um evento literário na periferia, com a linguagem da periferia e com as pessoas da periferia que saíram de lá. A gente não tem acesso e mesmo que a gente vá nesses eventos literários, o sentimento é de não pertencimento e não de inclusão.

Qual a importância da literatura nas periferias?
Ela é extremamente importante, falo isso por experiência própria. O acesso à educação que a gente tem é muito precário. Eu me formei no Ensino Médio muito cedo e mesmo assim enfrentei diversas dificuldades, porque o ensino que tive na escola não era suficiente para outras coisas. Inclusive, meu português era extremamente ruim, tinha dificuldades para escrever. Minha vontade de ler despertou daí: eu queria aprender a escrever melhor, e nada melhor do que ler. E depois de ter acesso à leitura, o mundo expandiu para mim. Foi a partir daí que tive interesse em fazer faculdade, escrever profissionalmente e buscar saber mais sobre as várias questões sociais que me atravessam sem eu nem saber porquê. O acesso à literatura abre o nosso olhar para o mundo. Quem vem da periferia só consegue ver aquilo que o cotidiano mostra; não temos essa visão de mundo ampla. Os livros têm esse peso.
Saindo do campo pessoal, conseguimos ver o impacto dela na realidade de outras pessoas por meio dos relatos que nos mandam nas redes sociais. A literatura tem uma importância enorme, e, justamente por isso, eu vejo que ela é negada a muitos. Não há nada mais forte que o conhecimento. E se você nega o conhecimento para uma grande parte da população, dificilmente essa parcela vai entender como a sociedade funciona. Logo, o poder continua na mão de poucas pessoas.
Por que criar um evento da comunidade, para a comunidade, na comunidade?
O evento é algo que impacta muito mais do que a palavra, é muito mais forte. Recentemente, participei da Bienal Brasil do Livro e da Leitura, no Distrito Federal, e, depois de dar uma palestra, fui assistir outros no evento. Muitas das coisas ditas por pessoas nesses lugares é extremamente utópico para a gente. Um deles, bem famoso, disse que não tinha vontade de mudar o mundo, porque queria apenas escrever e ser reconhecido por isso. Isso chegou a mim de uma maneira muito negativa, porque quando você não quer mudar o mundo, você está satisfeito como ele está. E isso para mim é muito chocante. O mundo é totalmente desigual, ele beneficia pessoas em detrimento de outras. Para mim não existe essa lógica de não querer mudar o mundo. Eu quero mudar o mundo o tempo inteiro, eu quero que as coisas sejam mais iguais o tempo inteiro.
Portanto, para nós que nascemos na periferia, ver alguém que passou pelas mesmas coisas é muito mais motivador. Não temos aquele discurso utópico de: “Ah é só você acreditar nos seus sonhos, é só você sonhar que você vai conseguir, todo mundo tem as mesmas oportunidades”. A gente sabe que não é todo mundo que tem as mesmas chances. Muita gente não tem nem chance de sonhar, porque passa muito tempo acordado para levar o dinheiro para casa. O nosso discurso é muito mais pé no chão, o que, consequentemente, traz mais inspiração. Vemos maneiras práticas de passar a mensagem para o jovem adolescente que ele pode chegar a algum lugar – e não se restringe à literatura, também se aplica em outras áreas.
Como está sendo o processo de desenvolvimento deste projeto? Você já tem um lugar definido?
A Bienal em si ainda está sendo construída. Fazer um evento desse porte é extremamente difícil. Estamos falando sobre dar acesso à literatura e ao ensino, e todas vezes que você faz algo que tem como missão a democratização do acesso a qualquer coisa, você sempre passa por empecilhos. Não temos o costume de querer igualar as coisas para todo mundo – e mesmo que fale que tenha e apoie na internet, é muito difícil levar para frente. Falta incentivo financeiro para construir algo como a Bienal.
Eu quero que ela aconteça em cidades brasileiras fugindo ao máximo do eixo Rio-São Paulo. Existe esse estigma de que para alguma coisa acontecer, um projeto sair do papel, você precisa estar em um desses dois lugares. Claro que, em algum momento, eu quero chegar nesse pólo, mas queria construir tudo isso em outro lugar primeiro. Penso em alguma cidade no Nordeste, que não seja Salvador. Além disso, independente do lugar, a minha meta com o evento é empoderar as pessoas das periferias de maneira econômica. Sabendo que a Bienal vai acontecer em novembro na favela X, meses antes eu quero oferecer cursos gratuitos de formação e treinamento em fotografia, audiovisual, produção executiva… para que essas pessoas trabalhem no evento de forma remunerada. É uma forma do dinheiro sair de lá e voltar para lá.
Em paralelo a isso, estamos tocando um projeto de arrecadação e doação de livros. Foi a forma que encontrei de consolidar a ideia da Bienal de alguma forma. Senão, íamos ficar só no campo da ideia: “Um dia vai ter uma Bienal, um dia, um dia…”. Então criei esse braço, no qual a Bienal é uma ponte.
“Não temos aquele discurso utópico de: “Ah é só você acreditar nos seus sonhos, é só você sonhar que você vai conseguir, todo mundo tem as mesmas oportunidades”. A gente sabe que não é todo mundo que tem as mesmas chances. Muita gente não tem nem chance de sonhar, porque passa muito tempo acordado para levar o dinheiro para casa.”
Mateus Santana
E como funciona a doação de livros?
A Bienal está com 38 voluntários espalhados pelo Brasil realizando ações de arrecadação de livros. Além disso, muitas pessoas entram em contato pelas redes sociais com interesse de fazer essa doação. Como ainda não temos verba para centralizar todos esses títulos aqui no Distrito Federal, os voluntários estão estocando os títulos nas respectivas casas. Fizemos um mapeamento para destinar corretamente os livros de acordo com a necessidade do local, público alvo e tudo mais. Hoje temos mais de quatro mil livros arrecadados e 26 projetos cadastrados, além da participação da Bienal nas doações de livros para bibliotecas públicas. Eu queria muito poder centralizar essa logística, para enviarmos tudo de uma forma mais bonita, com cartão, recadinho, uma caixa. Mas, infelizmente, não temos dinheiro para essas coisas.
Bienal do Livro da Quebrada
Para doar livros e/ou auxiliar de alguma forma o evento: bienaldaquebrada@gmail.com
Instagram: @bienaldaquebrada
Twitter: @bienalquebrada
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Fonte: CASA VOGUE