O Bairro da Liberdade é um dos principais destinos turísticos de São Paulo e marcado pela presença de imigrantes e descentes de japoneses que começaram a chegar a partir do início do século XX, seguidos por coreanos e chineses. Um fato pouco conhecido é que a história do bairro começa como um bairro negro, uma área periférica, antes denominado Bairro da Pólvora. A Praça da Liberdade se chamava Largo da Forca até 1891 por ser cenário de execuções de escravos e criminosos, e foi palco de revoltas como na execução do soldado Chaguinhas. O nome dado à praça eventualmente se estendeu à todo o bairro.
Onde hoje passam as ruas Galvão Bueno, Glória e a Rua dos Estudantes era onde se localizava o cemitério público, para onde iam esses corpos. Para os condenados o trajeto era Igreja dos Aflitos, Largo da Forca, Igreja dos Enforcados (onde eram velados) e o cemitério público. Posteriormente foi criado o atual Cemitério da Consolação, para onde foram transferidos muitos desses corpos e abriram-se ruas e avenidas, ocupadas pela população. Inicialmente os imigrantes japoneses foram se fixando por lá graças aos preços baixos de aluguéis. Quem vê as ruas hoje ocupadas por restaurantes, lojas das mais variadas, não imagina que até pouco tempo atrás ainda se encontravam ossadas de escravos nas construções que eram levantadas na região.
Quadrinhos sobre a Liberdade
Na busca de entender sua própria identidade, a autora Marilia Marz desenvolveu um trabalho de história em quadrinhos contando a história desses encontros de culturas no Bairro da Liberdade. Ela traduz a caminhada como prática estética através de sua percepção da cidade de encontro com sua narrativa pessoal. Após voltar de um intercâmbio ela se viu confrontada com essas questões e decidiu pesquisar mais a fundo esses encontros que permeiam sua vivência na cidade. O quadrinho além de um traço muito marcante pelo viés arquitetônico também pode ser lido de duas maneiras (a encadernação permite que ele seja lido tanto de um lado como de outro) onde seu início e fim se encontram.
“Como foi o meu primeiro quadrinho grande, criar uma narrativa pessoal foi algo muito natural, acredito que até mais fácil do que se fosse de outro ponto de vista. Mesmo assim, como a HQ fala de um tema que sempre me causou muitos questionamentos e sofrimento, às vezes foi muito difícil de encarar tudo isso, mas acho que acabou sendo a melhor coisa que eu poderia ter feito por mim mesma e pelo trabalho. Por outro lado, a parte da narrativa sobre o Bairro da Liberdade também foi muito gratificante de desenhar e criar, foi tudo o que eu sempre quis dizer para aquele lugar, que é tão importante para mim. “
Quem é Marília Mars?
Marília Marz é ilustradora e quadrinista de São Paulo. Autora do quadrinho Indivisível, ela possui uma produção intensa de tirinhas, quadrinhos e design. Indivisível é resultado do seu trabalho de conclusão de curso (2017) e foi selecionado pelo prêmio da convocatória Des.gráfica (feira de quadrinhos e publicações independentes com curadoria de Rafael Coutinho, realizada pelo MIS – Museu da Imagem e do Som e 2018, que ganhou impressão única de 50 unidades com capa em serigrafia.
O quadrinho fez bastante sucesso no seu lançamento na feira e a autora decidiu então reeditá-lo por conta própria e cobrir os custos de impressão por financiamento coletivo (crowdfunding) por campanha no Catarse . Encerrada em 4 de junho deste ano com 128% da meta. Essa edição além de conter material inédito como rascunhos e outros desenhos, também trará a parte teórica do TCC, e será possível ter acesso a todo o seu processo de pesquisa, suas referências históricas e conhecer mais sobre seu processo criativo.
A invisibilização histórica
Outro aspecto a ser abordado nesta edição é a mudança de nome da estação Liberdade do Metrô-SP para Liberdade-Japão (24 de julho de 2018) por meio de decreto do governador Márcio França. Essa decisão foi tomada sem que houvesse qualquer tipo de discussão aberta sobre a necessidade de mudança ou quais interesses seriam atendidos e ignora a existência de comunidades não-nipônicas e tão diversas, presentes no bairro e que constróem a história da cidade de forma tão singular.
A invisibilização histórica dessas comunidades que reivindicam sua existência em episódios tão violentos como execuções em praça pública, revoltas populares, imigração motivada por guerra ou por melhores condições de vida é novamente institucionalizada e reafirmada por uma decisão vertical, focada em uma única narrativa excludente. Marília como pesquisadora fala que teve dificuldade em encontrar material em vista dessas práticas: “foi difícil justamente por conta do apagamento sistemático da memória negra da cidade, da história e, por consequência, dos livros. Isso me fez recorrer à história oral como fonte válida para o trabalho. Por conta desse apagamento histórico, acho que o meu maior desafio na verdade foi traçar a linha entre realidade e ficção, principalmente porque estava fazendo um trabalho acadêmico, então não sabia muito bem o que me seria permitido e válido. No final das contas, minha orientadora acabou me incentivando muito a criar a minha própria narrativa e encarar o trabalho como ficção (o que faz total sentido), ainda que ficção histórica. A partir daí tudo fluiu muito bem, mas tive algumas inseguranças e dúvidas em relação a isso no começo”
Eventos e outros projetos
Esse ano a autora estará presente na Comic Con Experience pela primeira vez e lá será possível adquirir o volume do Indivisível revisto e atualizado e da campanha do Catarse. A autora ainda irá participar de outros eventos de quadrinhos e publicação independente e pretende lançar o volume em evento próprio mas ainda com data a confirmar. É possível acompanhar o trabalho dela em seu site e pelas redes sociais Twitter e Instagram. Sobre a possibilidade de novos trabalhos, a autora conclui: “Tenho sim vontade de fazer mais trabalhos assim, principalmente sabendo que o Bairro da Liberdade é só um dos vários lugares de São Paulo que guarda uma memória negra muito rica e, infelizmente, quase invisível. Me interesso muito por narrativas que falem sobre a cidade, mas por hora quero tentar algo mais fictício e atual, sem cunho histórico – mesmo se for para tratar de temas similares.”